50 Tons de Cinza: plágio ou releitura?

Texto de Clara Madrigano

A capa é famosa: o nó da gravata cinza, o fundo degrade de Photoshop da década de 90. Há pelo menos dois anos que ela domina o mercado estrangeiro, mas somente em meados de 2012 apoderou-se do solo nacional.

Nós conhecemos o livro.
Nós todos o vimos.
O nome da autora, E. L. James, é o pseudônimo de Erika Leonard, uma produtora de TV inglesa. E sua obra em questão, 50 Shades of Grey, é a mais recente mania mundial. No Brasil, onde foi traduzido como 50 Tons de Cinza, pela Editora Intrínseca, esgota em feiras literárias. Na Grã-Bretanha, lugar que não faz tanto tempo assim deu ao mundo J. K. Rowling, outro mega-monstro literário, o primeiro volume da série recebeu a honra de ser apenas o mais vendido da história do país. Mesmo sua versão digital estabelece recorde. Na Amazon.com trata-se do ebook mais comprado desde o lançamento do Kindle em 2008.
Dizem que todos os heróis têm sua história de origem para ser contada. Como 50 se deu pode parecer inusitado — e com certeza é. Antes de ser E. L. JamesErika Leonard era conhecida, na internet, por um pseudônimo menos convencional: Snowqueen’s Icedragon, apelido que usava para integrar a legião online de fãs de outra série imensamente popular: Crepúsculo de Stephenie Meyer.
Imagino que, na altura em que estamos, não reste muito a ser dito sobre Crepúsculo. A trama já foi reproduzida à exaustão nos cinemas, nos quadrinhos e até mesmo nas bonecas Barbie, mas o básico é este: Edward, um vampiro, apaixona-se por Bella, uma adolescente mortal. Durante quatro tomos de capa preta e com nuances góticas, o desenrolar da trama gira em torno da tensão causada pelo amor proibido (mas casto) entre os dois.
Independente de seus méritos literários, e eu não vou mexer no vespeiro, é difícil negar que a série tenha mudado o cenário da ficção, tornando potência o gênero adolescente, o conhecido como young adult, ao provar para meia dúzia de editores espantados que garotas, afinal, liam. Ainda mais: seu sucesso terminou de romper uma barreira que antes ainda existia com certa fragilidade, estendendo o público-alvo a não somente jovens, como também conquistando adultas, mães e esposas, criando um grupo particularmente dedicado de fãs.
É agora que precisamos falar sobre fanfiction.
A maior parte das pessoas que passa tempo considerável online provavelmente está familiarizada com o termo, usado para designar histórias escritas por fãs de uma obra já estabelecida, comumente publicadas de graça. Popularizadas nas últimas décadas, mas em voga desde que o mundo é o mundo, elas tornaram-se parte importante da cultura da internet e a regra é simples: o que um autor não provém, seus fãs fiéis irão. Qualquer possibilidade, quer absurda ou não, deixada sem ser explorada em uma obra canônica poderá ser explorada em uma fanfic. Um leitor de O Senhor dos Anéis pode dar continuidade a aventuras de seu (entre os mil existentes) personagem favorito, mesmo com o ponto final do autor. Hermione e Draco podem enfim se casar, e os tripulantes da nave Serenity não precisam se conformar com o cancelamento prematuro de Firefly. É a mágica da fanfic.
E eis que entra Erika Leonard. A magnum opus composta por ela, sob o nome de Snowqueen’s Icedragon, era conhecida como Master of the Universe. Na história, os protagonistas deCrepúsculo habitavam um universo alternativo — um gênero de fan-fiction que se apropria apenas das personagens, mas muda relativamente o mundo/cenário à volta delas. No UA de Master, Edward, não mais um vampiro, é um milionário adepto do sadomasoquismo enquanto Bella é uma estudante universitária virgem, aparentemente com um problema de rosácea sério o bastante para fazê-la corar a cada cena. A fan-fiction é erótica e o sexo que o romance puro de Stephenie Meyer não entregou, Snowqueen’s Icedragon forneceu em toneladas. O plot gira em torno de um acordo firmado entre Edward e Bella, que permite ao primeiro controle total sobre a vida e o corpo da segunda, seguindo supostos moldes do que é conhecido como uma relação dominante.
A cara original da série 50 Tons.
A fanfic fez sucesso online, elevando Snowqueen’s Icedragon à categoria de uma fã com poder o suficiente para ter seus próprios fãs. Deparando-se com a popularidade do que escrevia, Erika Leonard decidiu dar um salto, consolidando o que viria a ser prática comum no mercado atual,publicar sua fan-fiction como um original, dando um nome novo à história e aos protagonistas, rebatizados como Christian Grey e Anastasia Steele, e adotando o pseudônimo de E. L. James.
Existe um debate eterno a respeito da natureza do plágio versus fanfiction. Como tudo aquilo que toca direitos autorais, é razão de polêmica. Alguns escritores publicamente encorajam fãs a criarem as histórias baseadas em suas obras; outros, em contrapartida, são vocais na desaprovação. Autores como Diana Gabaldon Anne Rice fazem parte do grupo a acreditar que fanfictions são apropriação indevida e perseguem legalmente seus direitos. O novo favorito do mundo da fantasia,George R. R. Martin, autor de As Crônicas de Gelo e Fogo, também é contrário à ideia, chegou a comparar suas criações a filhos que ele não desejava ver brincando com estranhos — o que talvez seja fácil de entender, se os estranhos em questão andam por aí com brinquedos sexuais.
A ligação entre criador e obra é obviamente complexa e se as obras de escritores são como seus entes queridos, para não mencionar sua forma de sustento, a pergunta precisa ser feita: é certo um fã construir uma carreira em cima daquilo que iniciou a vida como fanfiction de algo concebido pelos esforços de outro autor?
Há quem diga que não existe nada de original na ficção; que tudo é reciclado, que todas as tramas são a mesma trama. Não nego… Até certo ponto. A existência humana é de repetições, e histórias são repetidas sem que importem as barreiras culturais a separá-las. Como pessoas, é nossa benção particular, a de contar e espalhar ideias.
A autora Angela Carter, em 103 Contos de Fadas, publicado pela Companhia das Letras, cataloga inúmeras versões de Cinderela, Branca de Neve e outras histórias famosas, todas trazidas de diferentes países e de diferentes épocas. Embora possam variar em nome, estilo e tom, são ligadas por alegorias em comum. Nós as conhecemos: órfãos, mães mortas, disputas entre irmãos, segundas esposas invejosas, cobiça pela juventude. São todas nossas heranças. Em Nourie Hadig, a versão armênia da Branca de Neve, não é a cor do sangue que dá à protagonista seus lábios rubros, mas a da romã. Da mesma forma, não é sua madrasta que a quer morta por sua beleza, mas sua própria mãe. No desfecho, quando Nourie Hadig revela-se a mais bela de todas, sobrevivendo a todos os desafios impostos por aqueles que a desejam mal, a mãe cruel é morta pela raiva que sente.
Pode Nourie Hadig ser considerada um plágio da versão de Branca de Neve que os irmãos Grimmtornaram famosa? Ou seriam os irmãos Grimm os plagiadores originais, roubando de versões anteriores?
A questão é nublada. Contos de fadas, por sua própria natureza, propagaram-se pelo mundo através da tradição oral, sendo difícil encontrar a fonte que os originou. Eles pertencem a uma época muito anterior, onde produção literária não significava o que hoje significa para nós — e onde histórias existiam como contos de moral para quem as escutava.
50 Tons de Cinza é um plágio? Na versão de E. L. James, vampiros acabaram substituídos por chicotes de couro, mas é inegável que a história tenha se apoderado das personagens e de um contexto previamente estabelecido por outra autora, escalando para a fama através deles. Graças ao boca-a-boca de fãs, 50 já havia ultrapassado 1 milhão de cópias quando finalmente a Vintage Books, um selo da Random House, apresentou sua proposta catapultando de vez a obra para um sucesso não mais nacional e sim global. Random House esteve em destaque ano passado, quando uniu-se com a Penguin para formar uma única companhia (chamada, de forma muito inspirada, Penguin Random House). A fusão veio como resposta à crise do mercado literário, onde livros digitais superam livros de papel cada vez mais. Em um cenário de inevitável e constante mudança, chega a ser fácil—embora não necessariamente perdoável—compreender porque editoras fazem lances altos por obras de procedência questionável, mas que se provam insanamente populares.
Havendo aberto a caixa de Pandora, E. L. James não está mais sozinha. Desde a publicação de 50 e suas continuações, outras fanfic de Crepúsculo ganharam contratos literários. Para mencionar algumas: Gabriel’s Inferno, de Sylvain Reynard, foi adquirido pela Berkley Books, e publicado em setembro de 2012. No livro, Edward vira Gabriel, um professor universitário fascinado por Dante, enquanto sua cara-metade vira Julia, uma inocente estudante virgem. Beautiful Bastard, comprado pela Simon & Schuster, coloca os protagonistas de Stephenie Meyer como colegas de trabalho, alterando seus nomes e idades. Diferente do antecessor, os livros citados ainda não foram lançados no Brasil. Nos Estados Unidos, ambos gozaram de um six-figure deal, significando 100.000 dólares ou mais pelos direitos à obra. Editoras parecem fiar-se na ideia de que, como a trilogia de E. L. James, eles serão o pote de ouro em meio à mudança.
Parece curioso que só recentemente descubra-se que sexo vende, e que o público feminino seja um de seus maiores consumidores. Há muitas décadas que romance, o gênero, movimenta as vendas em literatura. Qualquer pessoa que já tenha descoberto paperbacks de Júlia ouSabrina estocados na casa de avós conhece a verdade. No entanto, o mundo age como se pego de surpresa, chocado pelas cenas picantes de 50 e seus primos de primeiro grau. O sexo com o qual E. L. James brindou seus leitores jamais me pareceu ofensivo. Em matéria de pornografia, coisas mais estranhas já foram produzidas.
Pelo contrário: se existe algo que causa surpresa em “50,” acaba sendo o tratamento que ele dá à parcela da população que é justamente a responsável por seu sucesso. Anastasia, a protagonista, é uma personagem em constante necessidade de aprovação por parte de Christian Grey, dentro ou fora do quarto. Sendo baseada nos moldes popularizados por Stephenie Meyer, a história pouco se desvia do tema pré-estabelecido em Crepúsculo, onde uma garota decide que seu mundo deve girar em torno do homem misterioso que agora domina cada instante de seu pensamento e cada suspiro que ela permite escapar enquanto escuta músicas melancólicas e divaga a respeito de romances trágicos da literatura clássica. É a ideia em voga — quase impossível de se escapar — no cenário atual: a de que a única coisa capaz de trazer satisfação verdadeira para uma garota seja através de um macho da redenção.
Não sou o tipo de pessoa que acredita que livros devam lições de moral. Quando se fala de ficção, autores não têm nenhuma obrigação para com o público, exceto a de entreter. A experiência de leitura é quase sempre única e, quando tiramos alguma lição dela, a lição é nossa, conquistada arduamente; somos nós, afinal, que vencemos Sauron. Nós que enfrentamos os Comensais da Morte, que lutamos lado a lado com nossos colegas de escola; nós que entramos em transe de especiaria e que prometemos não aceitar mais doces da Feiticeira Branca. A missão de um escritor é a de nos guiar pelo caminho, como um Mestre dos Magos relapso, surgindo para dar sua opinião apenas quando necessário. Ao mesmo tempo, é ingênua a noção de que livros não nos moldam assim como é ingênua a ideia de que nossos hábitos alimentares, como apreciar donuts macios e gordurosos, não vão ter impacto futuro nos nossos corpos.
O mundo está repleto de donuts macios e gordurosos. Cabe sabedoria na hora de selecioná-los.

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